Ciência para a Inclusão Social

“Qualidades de talento inovador, liderança, abrangência social, trabalho incansável, integridade e ética.” Essas são as características exigidas pela Fundação Conrado Wessel (FCW) para os pesquisadores escolhidos para receber o Prêmio FCW de Ciência e Cultura. O perfil é condizente com a trajetória do vencedor deste ano na categoria Ciência Geral, Sérgio Mascarenhas Oliveira.

Membro da Academia Brasileira de Ciências desde 1951, quando foi eleito aos 23 anos, Mascarenhas é professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Instituto de Estudos Avançados da USP de São Carlos, por ele fundado em 1996.

De 1959 a 1968, nos Estados Unidos, Mascarenhas iniciou pesquisas na área de física do estado sólido, em particular em cristais iônicos, em centros de cor e em baixas temperaturas. Por seus trabalhos como professor visitante do Instituto de Tecnologia Carnegie, recebeu o Guggenheim Award.

O físico descobriu um novo fenômeno, a eletrotermocondutividade, cujas aplicações práticas são internacionalmente reconhecidas, em especial na escolha de características para dielétricos líquidos em transformadores de alta tensão. Mascarenhas também criou o conceito de bioeletretos em moléculas biológicas e introduziu no Brasil a cirurgia criogênica e a tomografia computadorizada em física de solos.

Nascido no Rio de Janeiro em 1928, instalou-se em São Carlos na década de 1950, onde criou um grupo de pesquisas em física dos sólidos. Foi um dos responsáveis pela implantação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e da Embrapa Instrumentação Agropecuária, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária.

Hoje, Mascarenhas se dedica ao desenvolvimento de projetos em tecnologia educacional e divulgação científica, envolvendo universidade e escola pública. Para ele, o Brasil precisa muito de uma cultura científica. “A ciência precisa ter uma função social. Ela é a única saída para o subdesenvolvimento e precisa estar junto da sociedade. Não pode ter um caráter consumista, de exclusão”, disse à Agência FAPESP.

O físico é comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico e detentor de 15 títulos acadêmicos e mais de uma dúzia de prêmios científicos de relevância. Mas o prêmio FCW de Ciência e Cultura terá, a esta altura da carreira, um significado especial para o ganhador, que afirma a intenção de investir em projetos sociais todo o valor da premiação, R$ 100 mil, com a distribuição de bolsas para estudantes carentes.

Na entrevista a seguir, Mascarenhas fala sobre o perfil do físico na atualidade, a necessidade de uma cultura científica e a importância social da ciência.

Agência FAPESP – Ao longo da sua carreira, o senhor esteve em contato direto com alguns dos maiores cientistas da história brasileira. Em sua opinião, o que mudou no perfil do físico nas últimas décadas?

Sérgio Mascarenhas – A física mudou muito nesse período, mas me parece que o perfil do físico permanece o mesmo há séculos. Ele ficou cada vez mais especializado, mas, como Galileu no século 17, quer entender o que há de mais fundamental para a natureza humana. O jovem ainda é atraído para a física pela curiosidade de conhecer a linguagem da natureza. E, como sempre ocorreu, o físico continua ganhando expressão quando seu trabalho se transforma em instrumento de melhoria social. Temos grandes físicos brasileiros, como José Goldemberg, Sergio Resende e Enio Candotti, que são exemplos disso – eles trabalham para a sociedade. A essência do perfil do físico é a mesma. A diferença é que ele se adaptou às características da ciência na atualidade.

Agência FAPESP – Quais são essas características?

Mascarenhas – Um dos traços principais da atualidade é uma convergência entre ciência e tecnologia. Hoje, não se pode falar mais do físico isolado. Mesmo quem trabalha com física básica atua de forma interdisciplinar e tem contato com a tecnologia. Por isso, o cientista é hoje tremendamente importante para a sociedade como instrumento de desenvolvimento econômico e social. O físico se instrumentalizou poderosamente com conhecimentos de outras áreas para fazer evoluir todas as áreas da física. Isso ocorre na física nuclear, de materiais e na biofísica molecular, por exemplo.

Agência FAPESP – A interdisciplinaridade é uma realidade consolidada no universo científico?

Mascarenhas – Sim, por isso mesmo minha vida científica tem sido completamente interdisciplinar. Quem se aprofunda em sua área tem inevitavelmente um olhar lateral e enxerga a interseção com as outras ciências. O que ocorre é que as disciplinas foram concebidas para facilitar as abordagens, mas a realidade não é dividida em disciplinas. A natureza não tem capítulos, como em um livro. A divisão é útil, mas é preciso ter em mente que ela é artificial. Imagine a realidade como uma orquestra tocando um concerto de Mozart. Se você ouvir só um dos instrumentos, não compreenderá a mensagem harmônica. O cientista que trabalha sem contato com outras áreas ouve os instrumentos isolados e não sente a orquestra do conhecimento em sua grandiosidade harmônica e melódica.

Agência FAPESP – Quais são as deficiências atuais na formação dos cientistas?

Mascarenhas – Temos um quadro paradoxal, porque nossa pós-graduação é excelente, mas o aluno chega à graduação com uma formação que deixa muito a desejar. Acho que o ensino básico precisa de uma grande injeção de motivação. Os professores precisam ser aparelhados para motivar. Até os 8 anos de idade, a criança consolida seu conjunto de circuitos cerebrais. É nessa faixa etária que temos que tratar da vocação e do talento. Mas como acender a centelha nas crianças se o professor foi desmoralizado pelo salário e pelo desprezo social?

Agência FAPESP – O que falta então é motivação?

Sérgio Mascarenhas – Não é só isso, ainda que seja fundamental para a vocação. Eu fui reprovado duas vezes, no terceiro ginasial e no primeiro científico [atual ensino médio], no Rio de Janeiro. Matava aulas, poderia ser avaliado como um estudante medíocre e até inconveniente. Mas, quando entrei no científico, encontrei professores espetaculares que me motivaram e chamaram minha atenção para a beleza da ciência. Fui aluno de Anísio Teixeira, que dizia: precisamos deixar a criança florescer. Nós não estamos aproveitando as potencialidades das nossas crianças. Estamos desperdiçando talentos.

Agência FAPESP – O que pode ser feito para reverter esse quadro?

Mascarenhas – Antes de mais nada, é preciso valorizar o professor. Mas vejo grande importância também em dois setores nos quais tenho trabalhado: a comunicação e a tecnologia educacional. A relação entre universidade e escola pública precisa ser mais estreita. E os novos recursos tecnológicos precisam acabar com salas de aula que continuam semelhantes aos mosteiros medievais. Também sou apaixonado por divulgação científica: ela é absolutamente fundamental para mudar o país.

Agência FAPESP – Por que a divulgação tem tamanha importância?

Mascarenhas – Nosso problema é que a ciência não faz parte da cultura brasileira. Nossas saídas para problemas sociais como a violência e o desemprego ficam no campo do entretenimento e dos esportes. Vemos projetos sociais envolvendo capoeira e futebol. Tudo isso é muito bom, mas por que não ciência? O que aconteceria se tivéssemos tantos laboratórios quanto quadras de futebol? Teríamos vários Pelés das ciências. A divulgação da ciência tem esse papel de fazer a ciência entrar na nossa cultura e de fazer desenvolver uma cultura científica. Nós inovamos o tempo todo em carnaval e futebol. Temos que ensinar nossas crianças a inovar em ciências. Com a TV digital, teremos a maior oportunidade de todos os tempos para o Brasil mudar sua cultura.

Agência FAPESP – É preciso, então, colocar o papel social da ciência em primeiro plano?

Mascarenhas – Sem dúvida. A ciência precisa descer da torre de marfim e se aproximar da sociedade. Estou muito honrado por ter recebido o Prêmio Conrado Wessel, que traz grande prestígio. Mas, para mim, foi muito interessante que o prêmio corresponda a um valor em dinheiro. Pretendo investir esse recurso em projetos de tecnologia educacional envolvendo universidade e ensino público. Quero usá-lo para dar bolsas a jovens carentes, que precisem de oportunidades nessa área. O objetivo principal é criar exemplos e mostrar que é possível desenvolver talentos quando se tem oportunidade.

Por Fábio de Castro
Agência FAPESP (15/05/2007)